O dia mais importante da vida de Joaquim, assim ele o considerava, tinha finalmente chegado. Apesar dos últimos três anos terem sido difíceis e trabalhosos, tinha obtido como nota final 18valores, garantindo-lhe uma boa posição para a candidatura ao curso de Artes Médicas – Ciência e Espiritualidade. Neste curso só os melhores dos melhores entravam e ele estava mesmo muito orgulhoso de si próprio por ter conseguido. A profissão que tinha escolhido era muito interessante mas tinha um caminho longo, difícil e desafiante, nem todos conseguiam chegar ao final. Esperava-o pelo menos seis anos de estudo universitário até estar finalmente formado, mas só podia abrir consultório próprio e exercer de forma independente, após trabalhar com um mestre deste oficio e obter a sua aprovação para exercer individualmente. Depois disso, se um dia quisesse ser mestre ainda tinha muitos anos de estudo e investigação acompanhada por outros mestres mais evoluídos. Pertencer finalmente ao conselho dos mestres era o seu objectivo e era um trabalho para a vida toda. Aliás, bem vistas as coisas, seria a sua própria vida. Os temas eram tão variados e abrangiam todo o conhecimento da humanidade sobre o ser humano e o universo, de tal forma que lhe chamavam em tom de brincadeira, a Medicina das Estrelas. Iria estudar matemática e física aplicada, cosmologia e mecânica quântica, medicina e fisiologia nas suas variadíssimas vertentes, psicologia, os 11 Elementos e os conceitos holísticos e muito muito mais. O conhecimento era mesmo vasto e só quando entendemos a verdadeira amplitude da dimensão do ser humano o podemos ajudar a curar-se, e esse era o principal objectivo deste curso, curar. As pessoas que recorriam a estes profissionais estavam mesmo interessadas em curar-se e não apenas num alivio temporário do sintoma.
Havia muitas escolas a ensinar estes conhecimentos mas esta escola era especial e tinha métodos de ensino muito próprios e desafiantes para os alunos. Logo no exame de admissão essa diferença fazia-se sentir. Para além dos testes normais, estava sempre reservado uma surpresa. Nesta universidade as notas eram importantes, mas a atitude perante a vida tinha sempre um peso muito grande na admissão final e todos os anos o desafio era conceptualmente diferente. Neste ano tinham analisado em entrevista o que é que cada candidato não gostava mesmo de fazer e o que nunca iria querer aprender, para depois no dia do exame colocarem cada candidato na situação de fazer e aprender o que não queriam, verificando as suas reacções. Engraçado tinha sido aqueles que não queriam aprender a andar de bicicleta por falta de equilíbrio e aqueles que não queriam aprender a nadar por terem medo da água. Houve outros que o desafio foi caminhar sobre brasas. O desafio para ele tinha sido muito difícil e desconfortável, saltar para a água de uma prancha a 10 metros de altura, misturava o medo e a vertigem das alturas que se aliava ao medo de saltar para a água àquela distância. Cada desafio tinha um tempo estipulado para aprender e ser executado, o que dificultava um pouco a situação.
Tudo o que ele tinha passado para chegar ali, não tinha neste momento a mínima importância, ele tinha conseguido e hoje era o primeiro dia da sua vida. Os seus pensamentos estavam focados no que tinham preparado para a recepção aos novos alunos. Este curso saía fora de tudo o que era considerado o padrão normal e os alunos tinham de, progressivamente, sair das suas caixas mentais de pensamento, evoluindo continuamente. Ele estava preparado para isso, mas uma coisa era a preparação, outra totalmente diferente era a realidade e, apesar de toda a preparação, a sua mente estava ansiosa e com muito pouca tranquilidade, não conseguindo suportar o vazio de não saber o que o aguardava. Em conversas com antigos alunos ele sabia que aquele dia iria ficar na sua memória para toda a vida e ao mesmo tempo que isso era muito interessante, era desconfortável e desafiador.
Apesar de ter chegado com mais de uma hora de avanço o anfiteatro estava quase cheio e para seu espanto já havia poucos lugares livres. Questionava-se se não teriam dormido de véspera no anfiteatro. Ainda faltava uma hora para o começo da recepção e praticamente todos tinham chegado. A espera pelos professores do curso pareceu uma eternidade. Aqui e ali uns silêncios pairavam na sala dando a sensação nessas alturas de o tempo parar, o que era confirmado pelos ponteiros do relógio de pulso que o avô lhe tinha oferecido pela sua entrada na faculdade. Pareciam amarrados a algo que os não deixava rodar e arrastavam-se teimosamente pelo mostrador. Aquela espera era interminável.
Os professores começam finalmente a chegar e momentos depois o director de curso inicia a cerimónia dando lugar ao discurso do reitor da universidade. O protocolo decorreu sem sobressaltos e por fim chegou aquilo que ele tanto ansiava. O responsável pelo curso retoma a palavra e sem muitos rodeios declara aberto o ano lectivo, desejando a todos os alunos um ano cheio de descobertas e de amadurecimento de quem são, passando imediatamente à primeira experiência de contacto com eles próprios. Iriam visitar umas salas cheias de espelhos e a única coisa que teriam de fazer era memorizar o nome de cada sala visitada e todas as sensações que sentissem. Não deveriam ficar em nenhuma sala mais tempo do que o necessário para perceberem o que viam e o que sentiam. Deveriam visitar o máximo de salas possível, apesar do objectivo não ser a quantidade mas a qualidade das experiências. O percurso deveria demorar cerca de uma hora e depois deveriam juntar-se todos no anfiteatro para falarem sobre as experiências de cada um.
Quando Joaquim entrou na primeira sala as sensações no corpo eram de arrepio e de um medo irreconhecível, mas rapidamente se transformaram numa sensação de bem-estar e protecção, mas aquilo que ele via no espelho era assustador. A sua imagem estava de tal forma distorcida que o que ele via era um monstro horrível. Apesar de se sentir protegido, aquela era a imagem que ele via, ao mesmo tempo que os seus pensamentos divagavam na estranheza da experiência. Sem conseguir entender bem o que se estava a passar consigo, algo estranho prendia-o àquela sala, teve de lutar contra si próprio para obedecer às instruções dadas e sair na direcção da sala seguinte.
A próxima experiência, o efeito apareceu ao contrário, sentiu-se em paz, mas passados os instantes iniciais uma sensação de conflito e raiva começaram a instalar-se, de tal forma que a permanência na sala estava a tornar-se insuportável e ele teve de sair rapidamente dali. Quando saiu daquele ambiente o alívio foi enorme! Lá dentro já nem conseguia respirar devido à tensão que se tinha instalado, estando a poucos segundos de entrar em pânico total. Só teve consciência do estado em que estava mesmo à saída da sala, o seu coração pulsava desesperadamente tentando acompanhar a respiração curta e esforçada que estava inconscientemente a fazer. Aquela sala tinha sido mesmo um desafio. Perguntava-se o que significava tudo aquilo. A viagem estava a ser emocionante apesar de assombrosa e desafiadora. Após uma pequena pausa para recuperar dirige-se à sala seguinte. Esta tinha um espelho enorme. Colocou-se bem à sua frente e quase instantaneamente começaram a passar imagens como se fossem vários filmes, uns eram de conflito e de desgraças, outros eram de situações harmoniosas, extraordinariamente não sentia qualquer emoção com o que estava a ver, independentemente das imagens ou filmes que passavam ele não sentia nada, era como se não estivesse ali. Ainda conseguiu fazer mais duas salas antes do tempo terminar. No retorno ao anfiteatro e em conversa com os outros alunos que se deslocavam na mesma direcção, percebeu que havia muitas salas, todas diferentes umas das outras. Algumas pessoas visitaram mais de dez salas enquanto outras não tinham conseguido passar da primeira sala. O estado emocional dos alunos era muito variado. Alguns estavam verdadeiramente emocionados com a experiência enquanto outros se divertiam contando o que tinham visto e experienciado, outros ainda falavam das aprendizagens sobre eles próprios. Era muito interessante escutá-los e conjugar o que tinham experienciado com a sua própria experiência. Agora estavam todos de volta ao anfiteatro e esperavam pelo director do curso para o finalizar do dia.
Quando o professor começa a explicar o significado das salas e como os espelhos se comportam, ouvem-se murmúrios e modulações de espanto e surpresa. Joaquim impacientava-se, estava obviamente interessado no entendimento da sua própria experiência e ansiava pelo significado das salas que fizeram parte do seu processo. Absorto nos seus pensamentos divagava pelas explicações do professor sobre as salas e os espelhos. Cada sala estava conectada com uma emoção, os espelhos iam mostrar inicialmente essa emoção e depois mostravam o modo como equilibrávamos essa emoção dentro de nós. Na realidade as salas e os espelhos reflectiam tudo aquilo que o Joaquim não era, mas que habitava dentro dele. Era como se aquilo que somos ficasse retido em nós e o espelho reflectia aquilo que não somos, na realidade mostrava aquilo que mostrávamos aos outros. Agora ele percebia a razão para sentir medo e depois equilibrar-se com protecção, e quando sentiu paz saltou logo para o conflito e a raiva. Essas eram as formas como ele na sua vida se equilibrava, mas só hoje é que tinha adquirido a consciência do que fazia. Ele não era nem paz, nem conflito, nem protecção, nem medo, descobria agora que não sabia exactamente quem era, ele era algo diferente do que ele conhecia e sabia. Estas descobertas começavam a assustá-lo, afinal quem é que ele era?
A revelação mais surpreendente foi a que estava relacionada com o que aconteceu na sala onde experimentara a posição de observador, ficou estático, sem qualquer reacção, incapaz de fazer fosse o que fosse e nem sequer tinha percebido o que as imagens lhe estavam a mostrar. Observar activamente era algo que ele não sabia o que era. Só conhecia duas opções, intervir ou ficar passivo. Ficar inerte sem sentir nada era a forma de se proteger. Sem saber como, escolhia sempre a segunda forma e hoje ficou claro que havia uma terceira forma para aprender: ser observador activo. O professor explicava que essa posição era alguém que observa, mas que sente o que se está a passar através de uma perspectiva privilegiada, que intervém na altura certa e da forma adequada em cada situação apresentada, que agradece todas as experiências sejam elas quais forem, sabe que existe sempre algo a aprender e que para todas as situações existe pelo menos uma solução.
Enquanto pensava nas palavras do professor sobre aquela sala, a sua atenção desloca-se para a pergunta que um aluno tinha feito sobre o significado de se sentir calmo, tranquilo e com uma percepção para além do que estava realmente a acontecer na sala das “Emoções com as quais já sabíamos lidar”. À qual o professor respondeu, “quando sabemos lidar com as nossas emoções, e infelizmente temos de aprender uma a uma, o mundo assume uma clareza que não conseguimos atingir quando as emoções ou a falta delas, ajudadas pelas crenças que vamos acumulando ao longo da vida, escondem ou distorcem a realidade, desalinhando o horizonte dos acontecimentos, não nos permitindo atingir a posição de observador activo. Este curso, que vocês estão hoje a iniciar, tem por objectivo, para além do conhecimento das matérias leccionadas, dar-vos sabedoria. Considerem que têm dentro de vós um diamante. Para que essa pedra interna reflicta uma luz pura que proporcione cura às pessoas que se aproximam de vós, têm de a lapidar e polir e para que isso aconteça têm de aprender a lidar com todas as emoções”.
Aquele dia tinha excedido todas as suas expectativas, sentia-se verdadeiramente feliz por ter escolhido aquele curso e abraçado aquele caminho, conhecer e saber quem realmente é previa que ia ser desafiante, mas que iria ser garantidamente capaz. No caminho para casa, as palavras finais do professor não lhe saíam da cabeça e lá ao fundo ainda o ouvia, expressando entusiasmo por todos os poros da sua pele: “bem-vindos à TESED.”