Joana tinha agora 70 anos e lutava há cerca de 2 anos contra um cancro no fígado. A sua luta parecia estar a chegar ao fim e tinha perdido a vontade de batalhar. Os tratamentos desgastantes de quimioterapia tinham-lhe retirado o ânimo para viver. Entregava-se agora aos pensamentos de revisão e análise da sua vida. Arrependia-se de não ter feito o que queria, de ter seguido demasiado “o que os outros iriam pensar” e as regras que a sociedade lhe tinha imposto, mas acima de tudo arrependia-se de não ter prestado mais atenção a si.
Tentou toda a sua vida proteger os seus filhos. Hoje percebe que deveria ter-lhes ensinado responsabilidade. Amava-os tanto que não conseguia suportar que se magoassem ou que algo lhes corresse mal. A perspectiva de que não estava disponível para sofrer com algo que lhes acontecesse começava a aflorar à sua consciência, percebendo que por isso os tinha protegido incessantemente. Dar-lhes responsabilidade seria estar disposta para assumir os seus falhanços, o que era difícil pois via-os como seus. Conforme a sua vida ia passando em flash, o conceito de vida que regulou a sua existência mudava a cada segundo na sua mente, descortinando, no meio de uma catadupa de pensamentos, que viver era afinal algo mais simples. Viver era aprender e aprender significava falhar continuamente. Deveria tê-los deixado falhar e chorar, deixá-los experienciar as suas emoções! Ao protegê-los, eliminou todas as possibilidades de aprenderem. Se pudesse voltar atrás isso era algo que iria mesmo mudar. Se eles tivessem chorado quando era para chorar, vivido e aprendido a lidar com as emoções, fazer as suas birras, teria sido adequado e no momento certo. Não se apercebeu na altura que ao bloquear isso, teve como consequências o choro e o desalento dela, lutar sem conseguir mostrar como deveriam encarar a vida, caindo sempre nos mesmos erros de mãe protectora.
Estranha esta doença, que lhe roubava a vida, mas que lhe estava a dar consciência de si e da vida que levou. Acreditou que estava a fazer a coisa certa, mas se tivesse tido o discernimento que estava a ter agora, poderia ter feito tantas coisas diferentes!
Recordava-se da sua infância e das dificuldades que tinha passado, da falta de comida e dos momentos de fome que tinha vivido. Lembrava-se de como decidira que se tivesse filhos nunca os iria deixar passar pelo mesmo e decidiu acima de tudo protegê-los. Pensou que estava a fazer a coisa certa, não imaginou as consequências dos seus actos a longo prazo, foi mais fácil no momento, descobriu tarde de mais que a sua postura era desajustada. Não os ensinou a lidar com a realidade e bloqueou-lhes a aprendizagem emocional. Quando choravam, fosse porque razão fosse, só descansava quando eles paravam de chorar. Acreditou que o choro era sinal de que estavam a sofrer e não lhes ensinou a lidar com as emoções que estavam por detrás daqueles choros, daquelas birras. Deu-lhes tudo aquilo que podia dar para que estivessem confortáveis. Esqueceu-se de lhes dar aquilo que era mais precioso, o seu tempo. Entendia agora que o que eles precisavam era da sua presença, do seu diálogo, da sua interacção, de brincar e divertir-se com eles, enfim, do seu amor. Deu-lhes protecção e julgou que lhes estava a dar o que eles precisavam para serem felizes. Ilusão das ilusões! Ensinou-os a estarem activos sem pensarem, ensinou-os a estarem ocupados para que o tempo passasse mais depressa, ensinou-os a mentir ao mostrar incongruência entre o que sentia, o que fazia e o que dizia, ensinou-os a esconder a realidade para não se focarem nos problemas, ensinando os fundamentos do falso positivismo – identificarem sempre o lado positivo da realidade em vez de a assumirem e partirem para as soluções.
No meio destes pensamentos que a torturam, a culpa começa a dissipar-se, a consciência de que fez o melhor que sabia começa a germinar, e isso permite-lhe alcançar perspectivas mais amplas dos acontecimentos, uma visão mais alargada, nascendo formas diferentes e mais eficazes de encarar a vida e os seus desafios.
Tinha casado duas vezes, a primeira era muito nova e não tinha maturidade suficiente para estar num relacionamento, via isso agora. Sempre culpou o companheiro por tudo, mas na realidade ela também tinha a sua quota-parte. Felizmente não tinham tido filhos! Na segunda relação já era mais madura e tinha alguma experiência, o que lhe permitiu gerir as situações com mais calma. Mas infelizmente cometeu os mesmos erros vezes sem conta. Tentou dar amor ao seu companheiro, e não percebeu que primeiro tinha de se amar a si própria, gostar realmente de si, só depois teria a possibilidade de amar alguém. Tentou preencher o vazio interior dando e recebendo amor de alguém. Nada mais ilusório! A expectativa de receber acabou aos poucos por matar a comunicação e o relacionamento teve o seu fim muitos anos antes de ele efectivamente terminar. Foi construindo teias de ressentimentos e culpas nas quais ficou presa. Como tudo era agora claro! Até a sua doença se materializava na forma de clareza temporal. Como começou, onde começou, tudo se encaixava! Julgava que tinha uma vida igual a todos os outros e nunca reparou nos seus contornos, focou-se nos cenários e não entendeu a mensagem no seu devido tempo. Casou aos 17 anos e separou-se 2 anos depois, para voltar a casar aos 26. O seu primeiro filho nasceu 1 ano depois de se ter casado pela segunda vez e tudo foi maravilhoso, o seu companheiro ajudou-a, partilhou os momentos e a felicidade era mesmo muita. Se identificasse uma altura da sua vida em que tinha sido mesmo feliz, era essa a que escolheria. Mas sem saber como, tudo se desvaneceu e os problemas começaram a surgir. Ficou grávida do seu segundo filho e aquilo que tinha sido colocado de lado, por não se saber resolver ou por não ter soluções disponíveis, florescia como se fossem cogumelos. O nascimento do segundo filho foi de cesariana, nem poderia ser de outra forma, pois a gravidez tinha sido tão cheia de ansiedades e de medos! Claro que não lhe disseram, que o facto de ter uma cicatriz abdominal poderia gerar mal funcionamento dos ovários e do útero, e também não lhe disseram que poderia ser a semente da dor ciática que já carrega há 20 anos! Aos 35 anos começa a tomar a primeira medicação, que supostamente seria para a vida toda, o comprimido para o colesterol. Tudo perfeitamente normal, pois das suas amigas ela era a única que fugia à normalidade de tomar tal medicação. Aos 40 anos teve o primeiro susto sério relacionado com a sua saúde, quase entrou em pânico com as sensações que estava a sentir, descobriu que a sua tensão arterial estava demasiado alta e que, tal como com o comprimido do colesterol, não havia mais nada a fazer, a não ser tomar a medicação específica para o resto da vida. Afinal tudo estava bem e de perfeita saúde, eram apenas os primeiros sinais da velhice a aparecerem. Para se compensar esse envelhecimento natural e de certa forma retardá-lo, a medicação era a sua salvação, disseram os médicos especialistas. A cadência do envelhecimento a partir dos 45 anos foi assustadora! Ao comprimido do colesterol e da tensão arterial juntaram-se, o mau funcionamento da tiróide, a descompensação hormonal devido à entrada na menopausa, as arritmias constantes, os suores frios, a chegada das primeiras tristezas sérias que perduravam semanas, a consequente tomada dos primeiros ansiolíticos e antidepressivos e, à consequente dificuldade para dormir e às noites em claro, junta-se o comprimido para sossegar a parte mais escura do dia. Quando pensa em toda a sua vida, percebe finalmente que lhe seria difícil ensinar responsabilidade aos seus filhos. Todas as decisões que foi tomando foram no sentido de dar a responsabilidade da sua vida aos outros, nunca assumiu verdadeiramente o leme, foi sendo governada e conduzida, nunca questionou nem procurou alternativas, levando-a até ao limite da sustentabilidade física e emocional.
Pergunta-se continuamente sobre qual o sentido da sua vida e que mensagem poderia passar para os seus netos, o que lhes poderia ensinar? A única coisa que lhe ocorre é como não se vive a vida, isso poderia ensinar. Mas como se vive ela não sabe. Tem a ideia de que deveria ter feito diferente, deveria ter seguido mais aquilo que gostava de fazer, em vez daquilo que lhe trazia mais conforto financeiro, deveria ter assumido a responsabilidade pela sua saúde, estar mais perto do que em criança lhe dava prazer e estar disponível para aprender, sabendo que o risco seria, falhar continuamente. Agora tinha a certeza de que essa seria a forma, mas saber se era capaz de o fazer não sabia, pois nunca o fez nem nunca experienciou uma vida dessa forma. Agora conceptualizava e perspectivava, e ao mesmo tempo imaginava que teria sido possível e, garantidamente, teria sido mais feliz. Estaria ela disposta a arriscar uma nova vida? Agora que tinha 70 anos? Era difícil de imaginar, o corpo parecia já não ter força e os últimos tratamentos de quimioterapia mataram o pouco que ainda restava, mas quem sabe?! Mais vale tarde do que nunca e desistir agora da vida pode fazê-la arrastar-se por vários anos sem sentido e sem alento para viver. Neste turbilhão de ideias, de memórias e de revisitações, decide resolutamente começar a viver, mesmo que isso dure um segundo será o segundo mais feliz da sua vida, o segundo em que definitivamente assume a responsabilidade por si e por quem é, o segundo do seu reencontro, em que percebe a amplitude e o significado da sua presença no planeta. Começar a viver nem que seja por um segundo, sim um segundo de cada vez, essa é uma óptima decisão e substituirá o arrastar dos anos em que nos direccionamos, sem saber, para uma vida sem razão de viver, como se fossemos zombies sem cérebro nem coração e, acima de tudo, afastados da nossa verdadeira essência, a nossa alma.
Se no final da nossa vida tivéssemos de transmitir uma mensagem e se essa mensagem fosse a nossa vida, a maior parte de nós não conseguiria transmitir qualquer mensagem. Joana apercebia-se como a sua vida tinha sido acima de tudo geradora de um vazio assustador, sem história para contar, sem projectos construídos, nem desafios ultrapassados, apenas o histórico da evolução da sua doença e do deteriorar do estado físico, os dois relacionamentos falhados e a educação dos filhos que lhe ocupou parte da vida e sem grande motivo de orgulho no resultado, e quanto à sua actividade profissional ainda era mais desesperante, detestava-a e durante o tempo todo, a única coisa que a acompanhava diariamente era a esperança da chegada da idade da reforma.
Enquanto estes pensamentos circulavam pela sua mente, finalmente percebia o sonho que tinha tido perto dos 16 anos de idade e que a tinha acompanhado ao longo da sua vida. Nesse sonho encontrava-se numa casa desconhecida, mas onde se sentia confortável, relaxando no sofá, quando houve bater à porta, nesse momento o seu coração acelerou, mas ainda que com algum receio lá abriu a porta. Na sua frente encontrava-se uma bruxa com uma cesta enorme aos pés, e sem lhe dar tempo para qualquer pergunta começa a articular uma série de frases numa algaraviada sem sentido que ela se esforçava por entender. Quando já tinha perdido a esperança de perceber o que aquela bruxa estava a fazer à sua porta, esta finaliza com a seguinte ordem: «- Tens aqui um cesto cheio de cebolas, descasca-as e penetra nas suas camadas o mais rápido que puderes. No final de cada cebola não encontrarás nada e encontrarás tudo. Procura o saber no meio do vazio e mantêm-te sempre humilde e ignorante. Quando descascares as cebolas vais chorar, mas diverte-te com esse choro, se evitares essa alegria o sofrimento será maior.». Mal a bruxa acaba de falar tudo à sua volta rodopiava e a bruxa desvanecia-se à sua frente. Quando despertou estava de volta no sofá e tinha um cesto enorme à sua frente, levanta-se e retira a tampa, confirmando aquilo que já sabia, estava cheio de cebolas! Sem perceber se estava a sonhar ou a viver a realidade, desmaia e quando agora acorda, estava no seu quarto. Procurou à sua volta e não existia qualquer cesto com cebolas. «Que alívio, tinha sido mesmo um sonho!» – foi o que pensou na altura, mas ao longo da sua vida sonhos com cebolas foram aparecendo sem entender o seu significado. Finalmente aqueles sonhos todos adquiriam sentido! Fugiu continuamente das suas emoções e do que a fazia chorar e tornava a vida desconfortável. Não chorou quando deveria chorar e agora estava a sofrer as consequências de ter protelado continuamente a sua maturidade e crescimento emocional, e o assumir a responsabilidade pela sua vida. Tinha o cesto de cebolas todo por descascar. Seria agora tarde para corrigir tudo? Teria tempo para o fazer? Teria forças para mudar o que tinha de mudar? Queria tanto conhecer-se que acreditava que seria possível – «Se conseguir viver nem que seja um segundo em contacto comigo já terá valido a pena.» – pensou. E cheia de esperança levantou-se e começou a andar. Para onde ia não sabia, mas também não era importante, o destino deixou de ser relevante, sabia agora que o melhor da vida encontrava-se na forma como usufruía da viagem.