Maria elevava-se no ar como se estivesse a flutuar, o seu corpo ficava para trás e a sensação de expansão era enorme. Seria aquilo parte de um sonho? Era tão real e ela estava tão consciente como nunca tinha estado. As sensações eram estranhas, ao mesmo tempo que deixou de sentir o corpo sentia tudo o que estava ao seu redor, como se ela fosse “a envolvente”. Questionava-se novamente se seria mais um sonho, ultimamente tinha tido tantos e tão vívidos, deveria ser mais um. Era tudo tão real e tão fora do que conhecia, que duvidava que o que estava a experienciar fosse autêntico. A expansão do seu ser continuava, simultaneamente a ligação ao corpo ficava cada vez mais ténue, e a conexão consigo era cada vez maior. Agora começava a ter a certeza que era mesmo um sonho. A pessoa deitada na cama era ela e era como se fosse algo que já não lhe pertencesse, já não sentia que fazia parte dela, era um corpo que sabia que era o dela e que, porém, lhe era desconhecido. A invulgaridade e a delicadeza das sensações, dos sentimentos e emoções que a trespassavam naquele momento, elevavam a experiência para níveis de extraordinária beleza. A dor e resistência que tinha sentido no início foram rapidamente ultrapassadas e estavam lentamente a dar lugar a uma alegria que se expandia e extravasava para além dos seus limites.
Alguém entra no seu quarto. Era a sua filha que se aproxima do corpo jacente. Depois de algumas tentativas para trazer alguma reacção ao corpo deitado na cama, começa a chorar compulsivamente. “Não chores, filha, eu estou aqui, eu estou bem” – o som que emitia não era escutado, perdia-se no espaço entre ela e a filha. Tenta abraçá-la para a acalmar, explicar-lhe que tudo estava bem, sem qualquer efeito, o seu esforço era inglório. A filha tinha agora caído sobre os joelhos e, desesperada, chorava sem forças para sair do quarto e informar a restante família.
Estaria o seu corpo sem vida?
Significava que a experiência que estava a passar, não era um sonho, mas a despedida da sua vida terrena?
Fica confusa e assustada, sempre lidou com o assunto de forma tranquila, mas passar pela experiência é diferente. Apesar do seu corpo não reagir, ela estava viva. Queria acalmar e tranquilizar todos os que recebiam a notícia, afinal de contas ela estava bem, não precisavam de se preocupar. Estava a ser desconfortante começar a sentir todas as emoções dos mais próximos de si, e apesar de não sentir dor, doíam. Paravam inclusive o processo de expansão e faziam-na retornar ao corpo, um corpo que já não reagia.
Que experiência estranha esta, estava perdida, sem saber como prosseguir, como fazer, como comunicar com as pessoas para as acalmar e tranquilizar, para que entendessem que ela estava bem e que parassem de sofrer, pois isso sim doía, e doía mesmo muito, ao ponto de ficar cada vez mais perto do seu corpo, a expansão parar e começar a regredir.
Perdeu totalmente a noção do tempo, agora parecia que tudo estava mais calmo, a expansão continuava, via tudo com mais clareza, tudo o que lhe era relacionado. Os seus familiares estavam a dormir, mas conseguia ver que o seu filho mais velho estava em viagem e que se dirigia para casa dela, estava triste e sentia saudades da mãe, ao mesmo tempo que via os seus netos mais velhos falarem sobre o seu falecimento. Sem dar conta aproxima-se de um túnel escuro que lhe cria algum receio e que a acalma ao ver a imagem de si em criança no fim do túnel. Tranquilizou-se e atravessou rapidamente o túnel dando a mão àquela criança que era ela. O amor que sentiam uma pela outra era enorme e extravasava todo o seu ser e todo o espaço à sua volta, de tal forma que era impossível evitar a fusão e a integração das duas. Que sensação de paz e tranquilidade, de sabedoria, parecia que ela agora sabia tudo. Todos os momentos da sua vida encaixavam-se, percebia que esses encaixes não eram só relacionados com esta vida, mas com todas as vezes que tinha estado na Terra, todas as experiências anteriores se harmonizavam. No meio daquele turbilhão de informação e de perspectivas, sente que tem de seguir sempre em frente e procurar a “luz”. Pela primeira vez estava a sentir medo e consegue até perceber que esse medo não se relacionava com nada que se estivesse a passar agora, mas com algo que vinha da sua mente. Começava a lidar agora com todas as situações que lhe tinham criado medo, julgamento, culpa, ressentimento, todas as vezes que se detestou, que não se amou e não se aceitou como efectivamente era, sempre que criou expectativas, sempre que cobrou algo que pensava que deveria receber, todas essas “emoções-visões” envolviam-na. Era uma luta e ela sabia intuitivamente que apenas deveria observar e não se envolver directamente, deixando as coisas passar e procurando sempre “o caminho da luz”. Não estava a ser fácil. A vontade de entrar na acção às vezes era maior, mas com algum esforço voltava a ter consciência e retornava ao caminho da luz. Se tivesse alguém a guiá-la poderia ser mais fácil. Lembra-se do estudo que tinha feito sobre o processo tibetano de despedida dos mortos e de como um guia na Terra lhe poderia ser útil neste momento.
Tudo o que lhe acontecera nesta e noutras vidas desfilavam agora perante o seu ser, umas vezes passavam como acontecimentos, outras vezes apareciam personagens, umas conhecidas, outras nem por isso, e ainda outras vezes eram emoções que tentavam envolvê-la, que se materializavam em seres ou coisas estranhas embrulhadas em medo, como se fossem monstros horríveis difíceis de contornar. Intuitivamente ela sabia que devia evitar lidar com aquilo agora, eram coisas da mente dela que ficaram por resolver, o tempo certo para resolver tinha passado, agora tinha de seguir em frente, aquele momento era dedicado a si e à procura da luz que a guiasse, procurava ao seu redor e incessantemente a luz como forma de encontrar o caminho dela. Sentia que já tinha feito aquele percurso anteriormente e sabia que prender-se em algo era muito fácil, o desapego por tudo aquilo que estava ligado à vida que tinha tido, era essencial para poder encontrar a saída e encontrar a luz que a guiava.
Naquela dimensão e frequência de funcionamento, o tempo não funcionava de forma linear, sabia que se encontrava perto da fronteira seguinte, a luz começava a ser cada vez mais intensa e as provações estavam a diminuir. Agora ela estava a “sentir” e o nível de expansão do seu ser era tão intenso e alargado que já não tinha dúvidas que entrava na fase da “purificação” e a expectativa que ninguém a chamasse de volta a Terra era muito importante. O caminho estava livre e rapidamente a fronteira estaria ultrapassada, a sua ascensão tinha finalmente iniciado e só iria parar quando estivesse pronta para voltar a reencarnar. O nível de consciência aumentava progressivamente, avaliava a sua vida e outras vidas que tinha tido, se tinha conseguido percepcionar tudo aquilo que queria, o que faltava experienciar e ao mesmo tempo programava a vinda seguinte, mas sem qualquer apego pelo que tinha vivido. Percebia claramente, o seu percurso, as suas decisões, onde ficou presa, o desapego actual permitia-lhe ver como a “viagem” tinha sido interessante, apesar de na altura não ter experienciado como deveria, nem lhe ter dado o devido valor. Era natural, a informação, a consciência, eram escassas e era assim de propósito, de outra forma nunca faria sentido. A alegria de ter sido capaz seguindo só a sua intuição era enorme, ela sabia que sabia apesar de ter a percepção que não sabia, ou seja, sem saber ela sabia e isso era maravilhoso.
Recordava agora toda a sua viagem de afastamento de tudo o que era material. O seu corpo, a primeira fronteira, no momento foi difícil e resistia com todas as suas forças, até estas a abandonarem e o seu ser deslizar para além daquilo que ela pensava que era ela. Este limite foi talvez o mais difícil, mas depois a sensação de expansão e o sentir algo que não era novo, e que nunca tinha sido experienciado de forma tão intensa e num crescente que parecia não ter fim, uma sensação de conexão consigo e com tudo, facilitou o desenrolar daquela viagem. Lembrava-se de sentir algo similar quando pegou no seu filho pela primeira vez. A duração e a intensidade eram significativamente maiores, de tal forma que desejava cada vez mais entrar dentro daquela sensação. Quanto mais se envolvia mais se afastava do que era material e mais se aproximava de si. No entanto havia algo estranho, pois quanto mais perto estava de si, mais sentia e via tudo o que se passava à sua volta, sentia os sentimentos das outras pessoas que estavam relacionados consigo e quanto mais percepcionava, mais aquela sensação de conexão consigo aumentava. A amplitude era tão grande que o limite seguinte foi ultrapassado e só se deu conta depois de o passar. Tentou voltar atrás, mas já não conseguia. A conexão intensificou-se ainda mais. Era a fronteira do não retorno. Agora mesmo que quisesse já não conseguia voltar para a Terra naquele corpo que tinha deixado para trás, a sua família, os seus bens, tudo, tudo ficou agora definitivamente para trás. Sentia a tristeza que os seus familiares sentiam e queria transmitir-lhes que estava bem, mas eles não entendiam a forma com que ela estava a transmitir e ainda choravam mais, sentindo ainda mais a tristeza. Era normal, afinal tinha sido uma vida juntos, e apesar de nem tudo ser felicidade, a vida é mesmo assim, eles gostavam muito uns dos outros, gostavam tanto que se magoavam. Neste momento era algo irrelevante, sem sentido e sem a mínima importância, era necessário seguir “viagem”. Ela estava bem e eles iriam com certeza ficar bem. Tinham agora a oportunidade de se despedirem dela, felizmente ela tentou ensinar-lhes o que era a morte e o processo inerente, esperava agora que fizessem rapidamente o luto e se despedissem dela. A prisão que lhe limitava a sua progressão, relacionava-se essencialmente com o que as pessoas que estavam na Terra sentiam relativamente a ela. Esperava que aquilo que ela lhes tinha ensinado surtisse efeito e eles se despedissem, desapegando-se, deixando-a seguir a sua viagem. Depois do luto natural, ela continuou viagem e a prisão que a enjaulava naquele ponto do tempo e do espaço estava desfeita. Estava perto de chegar à próxima fronteira, sentia-o muito bem, a conexão aumentava e agora ela sabia o que era o Amor e o seu significado. Nesta “viagem” tinha encontrado muitas pessoas conhecidas e outras nem por isso, pelo menos da vida que abandonava, que estavam presas, mas não se fixou nisso e continuou sempre, sempre no sentido da luz e no sentido da conexão, até ao ponto de já nem saber onde os seus limites terminavam. Pressentia que a próxima fronteira se aproximava, o medo tinha ficado totalmente lá trás, a matéria tinha ficado na matéria, a Vida estava com ela e intensificava-se a cada movimento, sentindo o Amor e a sua Energia a envolvê-la e a expandir-se dentro dela extravasando para além de todos os limites, elevando o seu Ser à sua verdadeira dimensão.
Agora o processo tinha terminado, ela sabia agora quem efectivamente era e tinha a possibilidade de se despedir totalmente da vida anterior e iniciar, se fosse essa a sua decisão, uma nova descida ao planeta. Percebia agora claramente e sabia o propósito de voltar continuamente à matéria, era essencial para ela, pois ganhava e dava-lhe muita energia e essa energia “materializava-se” em Amor. Agora sabia que o objectivo era viver e entender a Energia do Amor, num sítio em que podia viver e percepcionar a sua individualidade. Onde estava conhecia tudo e tudo estava conectado, de tal forma, que não conseguia sentir o que era ela e o que era o resto, mas a verdadeira sabedoria adquiria em cada “viagem”. Era estranho o que se instalava, pois parecia que todos sabiam de todos. O único sítio onde a individualidade se experiência, é “na matéria” e para além disso, “descer à matéria” é essencial à vida, sem essa experiência, existe estagnação energética e mantem-se o mesmo nível de consciência, a sabedoria tem dificuldades em evoluir. Agora que ela sabia isto tudo, o desejo de voltar à Terra era enorme, sabia claramente pelo que ia passar e escolhia pormenorizadamente a direcção em que ia, bem como a família que a ia acolher, também sabia que se iria esquecer de tudo o que sabia agora, mas isso nem lhe importava, pois cada um contribuía da forma que podia e sabia para a evolução da consciência colectiva. Ficar ali parada era difícil e apesar da energia de conexão e o Amor que existia ser enorme, começava a ser sufocante e ela precisava de se afastar dela própria para poder viver. O desafio era viver da mesma forma que estavam a viver agora, mas na individualidade, esse era o desafio máximo. A energia resultante do processo de nascimento, da vida terrena e do processo de desapego terreno seria optimizado ao seu limite. Vivermos na Terra em Amor, entendendo que todos somos um e um só, que a conexão existe e é real, resultaria no máximo aproveitamento energético e na máxima elevação da consciência individual e colectiva.
E mais uma vez mergulhou no plasma, ela conhecia muito bem aquele mergulho, já o tinha feito mais de mil vezes, como se estivesse a mergulhar de forma inversa no mar, a vontade de viver era enorme e mais uma aventura se iniciava…
Às 9 horas de uma noite de Inverno, uma mancha vermelha tingia o céu do anoitecer, dentro das casas corria-se aleatoriamente na direcção da porta da rua, o medo transpirava desenfreadamente por cada poro de pele. O fim do mundo aproximava-se, pensavam as pessoas que saiam assustadas para o exterior, olhando pasmadas para o céu escuro e para aquela mancha vermelha por cima delas. O dia era, aquele que marcava o início do fim dos tempos, tal como os conhecíamos, 25 de Janeiro de 1938 e Maria tinha retornado à Terra.